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ADRA
CAPITULO 8 | Chile

Ela dá cor

No Chile, milhares de meninas e meninos vivem em condições de extrema vulnerabilidade. O Serviço Nacional de Menores indica que a cada ano mais crianças entram no sistema de proteção, sendo sua principal causa o abuso infantil. O que você faria se não tivesse um lar ao qual regressar?





Acima de tudo, trata-se de ouvir. Eles ouvem e têm essa capacidade, algo que parece estar em extinção hoje em dia. Olhar para ouvir, para entender. Um ato de concentração com o propósito de saber o que o outro quer dizer. E o outro é, neste caso, ela, uma menina.

Marco e Efigênia são seus pais, mas na verdade não. Ela os chama de papai e mamãe, e são, mas não. Um programa de acolhimento os transformou em sua família, quando situações de maus-tratos e de negligência por parte dos progenitores a expuseram a extrema vulnerabilidade.

O programa Famílias de Acolhimento visa ser uma alternativa temporária, visto que se espera que os meninos e as meninas voltem para seus lares de origem ou que fiquem com algum membro da família estendida (como ocorre na maioria dos casos).

Mas o que acontece quando isso não é possível? O que ocorre quando alguns pais, avós e/ou tios apresentam problemas crônicos o que impede o retorno? O que ocorre quando não há um lar ao qual retornar?

No Chile, uma em cada quatro pessoas é criança ou adolescente. Destes, um terço passa por algum tipo de pobreza.* Cristina, assistente social especializada na infância, conta que “observa um vínculo inegável entre a violência perpetrada nas famílias e a violência estrutural instalada no país e que transcende o círculo da desesperança”. De acordo com o índice de vulnerabilidade escolar, sete de cada dez crianças estão em risco de interromper sua trajetória educacional. E, de acordo com o anuário do Serviço Nacional de Menores, a cada ano mais e mais crianças entram no sistema de proteção. O número não para de crescer desde 2006. O motivo principal são os maus-tratos contra a criança.

Marco diz que entre os motivos mais pesados e que provocam a situação, estão os anos escuros. “Vivemos muitos anos escuros durante a ditadura, onde a desconfiança destruiu as famílias e instalou temores na sociedade”.

Uma sociedade temerosa cria mitos e os reforça. “Quanto a nós, ouvimos comentários que punham em dúvida nossa decisão: ‘E se os pais da menina são viciados em drogas? Quem sabe como ela irá se comportar’, diziam. Ou aumentavam um temor que para nós já era grande: ‘Como vocês irão lidar com o fato de que algum dia ela irá embora?’ E essas insinuações nos deixavam sem saber o que responder e nos tirava o ânimo. Com o tempo, percebemos que se tratavam de dúvidas infundadas, centradas no eu. Dúvidas que poderiam descuidar o mais importante: a menina”.

O casal confirma que o tempo e as etapas burocráticas que tiveram de enfrentar foram excessivos: “O sistema complica os processos. Ele poderia ser mais simples para facilitar a ajuda de outras famílias. Veja, cada mudança de governo implica na modificação de decisões já tomadas. São estabelecidas novas normas, as coisas retrocedem e outras são anuladas. E tudo isso nos afeta. Para piorar, afeta as crianças que ficam com menos oportunidades. Entendemos que deve haver acompanhamento, sem dúvida, mas isso é uma coisa e outra bem diferente é a negligência da infância devido a interesses políticos”.  

Chamam a Efigênia de Kena. A tia Kena e o tio Marco trabalham com transporte escolar há mais de vinte anos. E, de acordo com eles, nos últimos cinco, sete anos, parece que os pais têm menos tempo do que antes. “Alguns não conversam nem um segundo para se despedir dos filhos. Até mesmo temos casos em que não conhecemos os pais. Eles nos contrataram e pegamos as crianças das mãos de seus cuidadores. Isso é lamentável. Essas crianças são as mais indisciplinadas e mais agressivas”.

Kena prepara um macarrão com molho de tomates, recém-comprados na feira e acrescenta muito coentro em cada prato. À mesa, o primeiro a ser servido é o pão: o típico pãozinho do Chile, a marraqueta crocante que acompanha todas as suas refeições. Ela aproveita a ocasião e deixa preparada a massa para a sopaipilla, tipo uns pasteizinhos fritos, que comerão às onze: a merenda.

Marco pega seu violão e dedilha um tema de Flaco Spinetta, enquanto conta que o instrumento lhe serve de terapia e que, falando de terapia, reconhece o bem que faz a tantos meninos: “Muitos guris recém começam a problematizar o que viviam em suas sessões. Antes davam por certo os maus-tratos ou achavam que os abusos eram normais”.

Canta um tema do Flaco e depois muda de repertório e passa para o folclórico. Enche a filha de elogios dizendo que dança muito bem. Kena aparece e mostra os vestidos que fez para a Violeta. Enumeram e recordam o dia 18 de setembro, dia pátrio chileno. A menina sorri confiante. Seus pais dizem e a frase perdura com ternura: ela dá cor a nossa vida.

A Violeta tem as maçãs do rosto vermelhas. Pela primeira vez no ano, está um pouco resfriada. “Ela nunca adoece, não falta nunca na escola”, a Kena diz. E a acompanha ao quarto com um chá quente de limão. Marco nos conta, enquanto as ouve conversar à distância, que nas primeiras semanas cuidando da Violeta receberam o boletim de seu baixo desempenho escolar anterior e as dificuldades que, segundo imaginavam, poderia ser cognitiva. “E hoje ela é a primeira da classe. Foi aprovada em tudo com notas excelentes. Ela é a primeira aluna da classe”.

Anúncios ministeriais manifestam a importância dos contextos familiares: “Deveríamos zelar para que a infância se desenvolva em contextos familiares, sendo a adoção a terceira alternativa”. Os que sabem insistem: “É fundamental que a família de acolhida de uma criança com complexa projeção de retorno seja acompanhada pela equipe e gere vínculos significativos, desinteressados e que não coisifiquem as crianças. É fundamental que os adultos se coloquem à disposição do bem-estar delas”. Tão certo como a dificuldade de que crianças vulneráveis, com mais de cinco ou seis anos, recebam proteção.

Além de vivenciar o monitoramento, acompanhamento e avaliação durante mais de dois anos do acolhimento, a Kena e o Marco demonstraram satisfazer as necessidades da Violeta, em todas as esferas para seu desenvolvimento, desde que chegou a seu lar, aos sete anos. Eles lhe permitiram dar continuidade ao relacionamento que tinha com seu irmão mais velho, seu vínculo familiar sólido. A participação da criança perante profissionais e Tribunais da Família, na decisão de continuar em seu novo lar, foi relevante e tão contundente quanto o artigo 12 da Convenção Internacional dos Direitos da Criança.

Kena e Marco ouvem; ouvem e cuidam da menina. Eles têm a capacidade de olhar para ouvir, para entender o que a Violeta quer dizer.

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* De acordo com a nova medição da pobreza multidimensional que incorpora fatores como educação, saúde, trabalho e segurança social, moradia, entorno e redes sociais.

O programa
O programa Famílias de Acolhimento, implementado pela ADRA Chile, tem o objetivo de restabelecer o direito das crianças de viverem em família, quando esse direito foi interrompido devido a situações de maus-tratos ou negligência perpetrado pelos responsáveis. A Convenção Internacional de Direitos da Criança, além de resguardar o direito de viver na família, indica que os estados devem prover às famílias todo o necessário para que as crianças possam exercer seu papel de criança. Deste modo, o modelo de família de acolhida deve procurar trabalhar para habilitar pais e mães a fim de que as crianças possam voltar a seu núcleo de origem e/ou garantir o lugar adequado para que elas possam se desenvolver de forma integral.




Créditos

Ideia e realização:  ADRA Sul-Americana
Direção executiva:  Paulo Lopes  |  ADRA Sul-Americana
Produção audiovisual:  Migue Roth & Bruno Grappa  |  Angular
Assistência executiva:  Silvia Tapia Bullón e Juninha Barboza
Trilha sonora e produção musical:  Nacho Alberti, Pablo Palumbo & Emanuel Zúñiga Vincent
Fotojornalismo:  Bruno Grappa & Migue Roth  |  Angular
Locução:  (Espanhol) Javier López Ortega  /  (Português) Robson Rocha
Tradução e revisão:  Adriana Oudri, Arlete Vicente e Beatriz Ozorio | IASD DSA
Web Design:  Lean Perrone
Crônicas:  Migue Roth |  Angular

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