Postais Esquecidos

ADRA
CAPITULO 7 | Uruguay

O pão com a pá

Mariana não apenas trabalha. Além de cuidar dos quatro filhos (cumprindo o papel de mãe e pai), ela vai com muita frequência ao rio, apronta os cavalos, prende-os na carroça e sai para cavar a terra para fazer tijolos e também areia para vender: ela ganha o pão a pá e tijolos. Sua história representa a força e a nobreza da mulher sul-americana.





Mariana é trabalhadora. Ela acorda às quatro e meia ou cinco horas da manhã e sussurra uma canção de ninar para sua filhinha caçula, com dois anos, que resmunga enquanto dorme.

Já em pé, Mariana apronta a chaleira e abre um pacote de Baldo, erva-mate brasileira econômica, e aferventa a água para o chimarrão que a acompanhará no trajeto até o frigorífico de Durazno, onde trabalha.

Durazno fica no interior, não muito distante de Montevidéu. É uma das cidades centrais da região oriental, mas longe o suficiente de Colonia e Punta del Este. Ela não é turística e é pouco conhecida fora do país. Porém, sobre sua população recai a responsabilidade de abastecer todo o Uruguai com produtos lácteos e cárneos.

Mariana não apenas trabalha fora, também cuida dos quatro filhos (ela exerce o papel de mãe e pai) e vai seguidamente ao rio, com muita frequência, para buscar terra para fazer tijolos e areia para vender. Ela ganha o pão com a pá e os tijolos.

Aparelha os cavalos e os prende à carroça com a ajuda de Jorge, seu tio e sócio na fábrica de tijolos, e vai ao Yi, o afluente mais importante da região. “O rio sempre foi a fonte de alimento para os animais e para nós; ele nos traz a areia com a qual trabalhamos e o barro para fazermos os tijolos e construirmos nossas casas. Nossos pais já viviam aqui. Este é nosso lugar, e como se pode ver é um lugar tranquilo”, explica Mariana enquanto vai até a última cova aberta, um poço às margens do Yi, de onde extraem a matéria-prima.

O processo de elaboração de tijolos requer esforço e tempo que não são, necessariamente, proporcionais aos ganhos, mas a Mariana vai lá, equilibrando-se na carroça, aguentando firme os quarenta minutos sob o sol, até à margem onde está a cova. Os cachorros, Malevo, Pirata e Negra, correm ao seu lado, escoltando-a ida e volta.

Suas mãos fortes e venosas manejam com destreza o cabo de uma pá que lhe acentua os calos; com a mesma destreza nivela a mescla de excremento e barro nos moldes de madeira; forma retângulos e os apoia no chão, com a suavidade de uma carícia. Ela chama esse ritual de “corte”. Do corte podem resultar mil, dois mil – com muito trabalho – quatro mil tijolos crus que ficam no chão, secando por três dias. Então ela os empilha, deixando ductos na parte de baixo onde ateia o fogo por todo um dia. O fogo é o que dá a cor avermelhada e a solidez ao tijolo. Conseguir a quantidade de lenha necessária para a queima é uma história à parte. Por cem tijolos, os donos de lojas de materiais de construção lhe pagam dez dólares.

A Mariana possui lábios finos e olhar penetrante; sua expressão é séria e dura. Não se constrange em dar uma ordem e não tem problemas para mostrar um erro, mas faz piadas também. Ela diz que a alegria deve ser renovada como a água da garrafa térmica. Entrementes, recita refrãos imprecisos, contraditórios que lhe valem mais pelo peso dos idosos que os repetiam, do que por seu sentido: “Não é por madrugar que amanhece mais cedo”, afrouxa o passo; e pouco depois insinua à Gladys, sua vizinha: “Deus ajuda quem cedo madruga”.

Há conversas no ar. Caminha-se pelo bairro, chamado de El cemeterio, e se podem sentir as pessoas falando, pedindo algo, rindo. De algum alto-falante se ouve a o ritmo da cumbia, metros adiante uma conversa matutina em uma rádio local. O aroma das cozinhas inunda as ruas; cenouras e batatas cozinhando; cebolas fritando e o aroma das sopas avançando como uma tentação entre os corredores. A Mariana diz que não há nada melhor do que comer um guisado depois de uma jornada extenuante. O ensopado é feito devagar, embora a fome faça o estômago resmungar; as verduras e a carne são picadas com a faca enquanto a brasa começa a arder: “a panela é grande, de acordo com a quantidade de pessoas, que acaba sendo mais do que se pode contar de relance. Se algum vizinho passar por ali, sempre será bem-vindo”.

À mesa, há temas recorrentes, histórias místicas, por exemplo. “Dizem que outra noite apareceu uma figura na ponte velha, parecida com o lobisomem... que é como, como lhe digo? Como uma quimera, dizem”, relata Etelvina, irmã de Mariana. No embalo, sua filha mais velha se anima e conta que vários peões deixaram de ir ao frigorífico pelo atalho porque ouviram a chorona e agora preferem fazer uma grande volta, mesmo que leve o triplo do tempo para chegar. Pergunto se as histórias de aparições ou de bruxaria, que proliferam, se devem ao fato da proximidade do cemitério. Eles negam: “De forma alguma. Nós, quando criança, brincávamos entre as covas e os túmulos. Aqui o cemitério é tranquilo. Além do mais, ele é cuidado pelo Gaúcho, o cachorro, vocês o viram? Um cachorro de bronze chamado Gaúcho”. Não o tínhamos visto e pensamos que estavam brincando, mas é verdade: na entrada do cemitério há um cachorro de bronze a quem os vizinhos fazem ofertas de flores a cada semana. As pessoas locais contam que “o gaúcho” permaneceu junto à tumba de seu dono por vários meses; somente se levantava para buscar comida e voltava, e voltava sempre, e ali permanecia; e permaneceu assim até que a tristeza também levou a sua vida. Agora uma placa diz: “Por sua inigualável lealdade, por ter sido nosso, por nos dar sua lenda”.

No Uruguai há candombe, comparsas e murgas. “Somos um povo que enfrenta a dor e a desigualdade dessa forma. Queremos viver alegres e em um lugar tranquilo, embora o rio já não seja o mesmo e, às vezes, fica irado”. A Mariana faz alusão às crenças a respeito do Yi, às histórias de inundações que açoitaram a cidade: quatro nos últimos cinco anos, nunca antes tão seguidas; nunca antes tão ferozes. “Quando o Yi transborda, provoca desastres. Leva tudo o que custou para ser construídos e deixa tanta sujeira e umidade que adoecemos”.

O que vocês fazem com essa sensação de impotência? Onde deixam a comiseração e a raiva?

“Quando o Yi transborda, ficamos na miséria. Ou era isso o que acontecia. Esperamos que agora não mais. Com o pessoal da ADRA aprendemos a respeito dos primeiros socorros, da organização comunitária, antes das inundações, e também durante as enchentes; e conhecemos formas de responder às emergências porque, às vezes, pessoas que se aproveitam da desgraça alheia roubam o que podem. Desde que participamos do treinamento, sabemos com agir. O que eu destaco do projeto é que nos ajudou a trabalhar mais unidos e em solid... solidar... é uma palavra difícil, bem, a sermos solidários. Na verdade, quando há inundações, sempre somos solidários entre os vizinhos, até mesmo com pessoas com quem não conversamos. Mas agora estamos mais bem preparados, que é a forma correta de responder a uma emergência, não é mesmo?”

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O projeto
O projeto «Fortalecimento da resiliência da população ribeirinha da cidade de Durazno» da ADRA Uruguai teve por objetivo analisar, com a comunidade, as características, os riscos e as consequências das inundações devido à cheia do rio Yi; contribuiu para o fortalecimento das capacidades de resposta a emergências da comunidade, e fortaleceu os vínculos entre a comunidade e as instituições envolvidas na resposta às emergências. Ele foi realizado durante seis meses, desenvolvendo atividades nas áreas de preparo e resposta, especialmente dirigidas às mulheres, crianças, adolescentes e setor educacional, voltado para melhorar suas habilidades e destrezas para se organizarem no bairro, para a evacuação a pé seco e para atuarem de forma colaborativa.
Os módulos desenvolvidos nos bairros Cementerio, La Amarilla, Villa Guadalupe, Puerto de los Barriles, B.U.E.M (Bairros Unidos Em Marcha) e Santa Bernardina, foram: Sensibilização; Mapa de riscos; Primeiros socorros; Alerta antecipado e Organização familiar.
Mediante as capacitações, foram atendidas de forma direta 285 representantes de famílias. O total de pessoas de beneficiários diretos e indiretos é de 798.




Créditos

Ideia e realização:  ADRA Sul-Americana
Direção executiva:  Paulo Lopes  |  ADRA Sul-Americana
Produção audiovisual:  Migue Roth & Bruno Grappa  |  Angular
Assistência executiva:  Silvia Tapia Bullón e Juninha Barboza
Trilha sonora e produção musical:  Nacho Alberti, Pablo Palumbo & Emanuel Zúñiga Vincent
Fotojornalismo:  Bruno Grappa & Migue Roth  |  Angular
Locução:  (Espanhol) Javier López Ortega  /  (Português) Robson Rocha
Tradução e revisão:  Adriana Oudri, Arlete Vicente e Beatriz Ozorio | IASD DSA
Web Design:  Lean Perrone
Crônicas:  Migue Roth |  Angular

www.adraamericadosul.org

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